terça-feira, 15 de novembro de 2011

Uma crença fatal

A maioria das pessoas costuma lidar com a morte com crenças religiosas ("há existência após a morte, que é só uma passagem" ou "há uma energia espiritual que persiste após a morte física" etc.). Embora seja menos criticado, por ser uma racionalização mais inteligente, alguns ateus mais ligados às ciências naturais (como biólogos e físicos) também procuram adocicar a morte com ideias que para mim soam implausíveis, algo como "sobrevivemos parcialmente por meio de nossos filhos, que herdam 50% de nossos genes" ou "somos poeiras das estrelas, não morremos, a matéria apenas sofre uma transformação".
Ora, quem tem um irmão gêmeo ou conhece-os, sabe que um não é o outro, embora compartilhem 100% os genes e muito da história de vida, quanto menos um filho. E quanto à ideia de que a matéria de que somos feitos sobrevive, considere: se o Museu do Louvre pegasse fogo e só restassem cinzas de seu prédio e suas peças de arte, ainda assim não haveria motivos para ficarmos tristes? Afinal, as peças de arte eram feitas daquelas cinzas... Convenhamos, este raciocínio não serve para justificar nem a perda da Monalisa, quanto mais de uma pessoa de carne e osso como foi Leonardo da Vinci ou você é. 

Alguns ateus mais ligados às ciências humanas (mais intelectuais e menos cientistas) não costumam se satisfazer com estas explicações naturais e, por sinal, parecem não se satisfazerem com qualquer outra coisa. Mas, com o perdão do estereótipo e de todas as numerosas exceções, esse tipo costuma lançar mão de uma mistura encantada de pessimismo, boemia, sexo casual e tragédia pessoal para tocar à frente a “absurda existência humana”.

Qual é o problema que vejo nestas visões? Todas elas levam as pessoas à inércia em relação ao problema da morte, seja considerando que a morte é só uma passagem para um paraíso imaginário, que a morte não existe ou que ela existe e, por conta disso, a existência humana é irremediavelmente absurda e é melhor largar o assunto pra lá.

Daí surge minha simpatia pelas ideias dos engenheiros e cientistas radicalmente otimistas e ousados, no estilo dos TEDsters ou transhumanistas. Essas pessoas, ao mesmo tempo em que são honestas o bastante para reconhecerem o problema, propõem uma solução positiva: não vamos brincar de esconde-esconde; vamos começar a pôr a mão na massa e, quem sabe assim, pelo menos nossos netos terão sorte o bastante para levar uma existência menos sombria e, quem não se der bem a tempo, fica criopreservado, que parece ser bem mais prudente que cremado.

Fora essas poucas pessoas de imaginação ousada, o restante das pessoas prefere simplesmente aceitar docilmente a morte a pensar claramente sobre o assunto, o que para mim é um paradoxo: na busca do conforto psicológico diante do medo da morte, as pessoas preferem se deixarem morrer, sem nem ao menos considerar a possibilidade de algumas soluções técnicas que começam a ser vislumbradas atualmente (como a criônica e o início das pesquisas anti-envelhecimento). Eu vejo isso como uma piada ou pegadinha existencial: a melhor forma que a maioria dos seres humanos encontra para lidar com a morte, atualmente aumenta suas chances de morrerem, da mesma forma como a gordura adiposa, que foi evolutivamente útil em eras passadas, atualmente mata as pessoas obesas. Como, disparadamente, o recurso mais utilizado é algum tipo de crença na existência após a morte (espiritismo, esoterismo, misticismo, espititualismo etc. -- já que ninguém quer mais usar a palavra "religião"), acho que não é de todo absurdo dizer que a crença na existência após a morte é uma ideia que, de certa forma, mata. Uma crença mortal. “Pesquisas anti-envelhecimento? Criônica? Isso é uma bobagem, meu lugar é no céu, junto de Deus e suas hordas celestiais.”

Mas acho que essa é uma piada lúgubre, de profundo mal gosto. Muitas pessoas maravilhosamente boas se voltam para as religiões com as melhores das intenções e com sinceridade. Como insetos que são torrados nas lâmpadas dos postes, as pessoas procuram a crença no sobrenatural atrás de vida, certezas sobre como viver a vida e segurança para uma existência espiritual após a morte. Mas tudo o que recebem por isso é a morte embrulhada no papel da ignorância. Isso me faz lembrar um versículo bíblico, em que Jesus teria indagado: "E qual o pai dentre vós que, se o filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou, se lhe pedir peixe, lhe dará por peixe uma serpente? Ou, se pedir um ovo, lhe dará um escorpião?". 



Pequeno documentário sobre o estoicismo

Acho que essa visão explica um pouco a motivação de se criar um blog para divulgar essas ideias a quem possa interessar. Mas a dúvida que queria expor, é a seguinte: a consequência de não se acreditar em Deus ou na vida após a morte e nem se utilizar racionalizações para lidar com a morte é uma vida infeliz, dominada pelo pessimismo e pela ansiedade? E minha resposta é um contundente NÃO. Você não precisa se valer de crendices como a existência após a morte, nem precisa dar nó em pingo d'água para se convencer de que não existe problema algum com a morte. Podemos levar uma vida feliz apesar de tudo isso porque podemos, em larga medida, assumir o controle sobre o que sentimos. Podemos, aliás, escolher ficar felizes pelo conhecimento destes fatos, por vivermos nesta época e termos melhores chances de lidarmos com esses problemas do que qualquer outra geração anterior. Pense em alguém que tivesse essas mesmas ideias, só que em 1911. Esta pessoa, "exilada" no início do século XX, ainda estaria a 100 anos da ciência atual. Só isso já é para mim motivo de sobra para felicidade legítima. 
 
Acho importante buscarmos a felicidade e cultivarmos o otimismo em nossas vidas. Só que acho importante fazer isso sem alimentar a inação, a passividade, já que o mais importante é que cada um se engaje de alguma forma, dê sua contribuição para as causas que o comovem. Agora, se, finalmente, mesmo depois de tudo isso, chegar o momento do "apagar das luzes", podemos enfrentar esse momento com coragem e serenidade, sabendo que fizemos a nossa parte, fizemos o melhor possível, agimos conforme o que nos ditava a razão.

Essa linha de raciocínio utiliza algumas ferramentas de uma "filosofia" ou "arte de viver" muito antiga, chamada estoicismo. O estoicismo já foi considerado um precursor da terapia cognitivo-comportamental, e despertou a atenção de estudiosos como Albert Elias e Aaron Beck. Já foi chamado de o "zen budismo para mentes analíticas", por enaltecer o papel da razão e do pensamento lógico (a lógica de predicados era parte dos ensinamentos estoicos). Foi por séculos uma filosofia muito popular entre os antigos romanos e enfatizava que, para levar um vida feliz, você deve exercer o controle sobre o que está sob seu controle e cultivar a indiferença em relação ao que não está sob seu controle. Os estoicos defendiam uma vida simples e austera e sustentavam que a felicidade é encontra pela remoção dos desejos, não pela sua satisfação. Na minha leitura pessoal, o ponto central do estoicismo soa algo assim: "matenha-se firme fazendo o que você pensa que deve ser feito e descanse sua mente quanto ao resto". Uma espécie de arte do controle pessoal pelo controle racional dos pensamentos. Ao invés de uma sopa bagunçada de neurotransmissores, é você no comando.

Utilizar o estoicismo hoje certamente não é uma questão de “plug and play”. Afinal, depois de mais de dois mil anos, a humanidade aprendeu algumas coisas. Por exemplo, a visão de virtude dos estoicos soa ultrapassada em muitos pontos (submissão da mulher ou preferências sexuais, por exemplo). Estudiosos da psicoterapia moderna, como Martin Seligman, demonstraram a importância do otimismo para levar uma vida saudável (será que o otimismo seria um caminho para a indiferença estoica?). Aliás, se fosse se sente muito pessimista ou deprimido, recomendo bastante o livro "Aprenda a ser otimista" de Seligman (não é um livro de blá-blá-blá autoajuda, é um livro de divulgação científica da psicoterapia, com fundamento acadêmico ou, se preferir, é um livro de autoajuda com fundamento acadêmico).

Há também uma metafísica no estoicismo que soa para mim meio suspeita e acho que sem esta metafísica ficaria difícil sustentar com o mesmo rigor a indiferença estoica em relação à morte (os estoicos não viam problema algum na morte e alguns até se matavam). Embora não dispensassem muita importância para os rituais envolvendo os deuses romanos, era comum aos estoicos recorrerem a uma ideia panteísta de Deus, também chamado Natureza, Providência, Razão (uma visão de um deus impessoal que parece guardar semelhança com o panteísmo de Espinoza e Einstein). Mas parece que também havia espaço para um pensamento mais cético ou ao menos faziam-se questionamentos nesse sentido. Esta metafísica também abrangia a crença em algum tipo de persistência do espírito, embora este fosse considerado de natureza material. Estas ideias podem ser aproximadas de algumas ideias transhumanistas: muitos acham possível que no futuro existirão superinteligências semelhantes a deuses, uma visão que não é restrita aos transhumanistas. Em recente entrevista ao NYT, Richard Dawkins comentou sobre “a possibilidade de que poderíamos co-evoluir com computadores, um destino de silício”, mencionando os comoventes escritos do físico Freeman Dyson sobre um futuro em que “os seres humanos evoluíram para algo como raios de energia inteligente e moral superpoderosa”. Adentrando ligeiramente no terreno da ficção científica, talvez uma assembleia destas superinteligências resolva ser chamada de “Providência” ou “Faculdade Mestra”. Também é comum entre os transhumanistas a crença (justificada, no meu entender) de que a criônica pode importar em algum tipo de persistência após a morte, com a preservação do que pode consistir o aspecto mais fundamental do que vem a ser uma pessoa: o seu conexoma. Assim, mesmo a metafísica estoica não está tão absurdamente distante do que a imaginação humana atual concebe.

Indiferença grata: Professor Anton fala sobre estoicismo

Enfim, o estoicismo pode fornecer algumas ferramentas antigas que podem ser combinadas e alteradas com outras mais modernas. Dito isto, não quero dar a entender que sei muita coisa sobre o assunto. Apenas li alguns textos na internet (em português, há um texto muito bom na introdução às Meditações de Marco Aurélio), li alguns vídeos no youtube (listados abaixo, em inglês) e encomendei um livro cuja resenha compartilho na próxima postagem. É uma resenha muito boa e acho que tem tudo a ver com o espírito do blog.

2 comentários:

  1. Excelente post!! Tive contato com o Estoicismo através de um ótimo livro do escritor americano Tom Wolfe. O livro "Um Homem por inteiro", traz um de seus protagonistas arrebatado pelos ideais estóicos, encontrado a paz e a felicidade através do estudo da doutrina. Abs!

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  2. Camacho, valeu pela dica. Comprei o livro. Várias resenhas muito positivas. Estou aguardando chegar.

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