domingo, 11 de setembro de 2011

Aperfeiçoamento Humano: experimentos em busca do mito moderno


Trecho interessante do documentário.

Quem se interessa pelo assunto "ciência versus religião" ou a busca da conciliação ou pontos de contato entre ciencia e religião, poderá se interessar pelo documentário de três episódios "Aperfeiçoamento Humano" (no original Technocalyps), produzido por Frank Theys e veiculado no History Channel de Portugal.
O documentário possui entrevistas interessantes e traz algumas revelações sobre ala transhumanista "pentecostal", isto é, aquela interessada em fazer uma colagem a qualquer custo entre ciência e religião (ao contrário das alas mais cética e críticas) e a inspiração religiosa por trás dos líderes de grandes projetos científicos, como a exploração espacial e o projeto do Genoma Humano.
A temática de "Aperfeiçoamento Humano" é semelhante a do documentário Transcendent Man, inclusive muitas das pessoas que aparecem em Transcendent Man também estão lá. Algumas entrevistas são até melhores ou pelo menos mais extensas, como a de Hugo de Garis. "Aperfeiçoamento Humano" é alguns anos mais antigo que Transcendente Man (terminou de ser filmado em 2006, enquanto Transcendent Man terminou de ser filmado em 2009).
Como eu ia dizendo, do ponto positivo há o fato de que as entrevistas são mais extensas, há outros entrevistados bons, mas, prepare-se: conclusões e entrevistados completamente malucos também estão presentes, principalmente no final do terceiro episódio (o pior de todos).
Documentário Aperfeiçoamento Humano: entrevistas boas, atmosfera "dark", imagens desagradáveis, costura apressada entre ciência e religião.

Os pontos negativos são vários. Em primeiro lugar, a atmosfera dark, de "cine trash" do documentário, a começar pelo título original, em inglês: "Technocalyps". Isso torna o documentário tão estranho e esteticamente tão desagradável que demorei um pouco para ter certeza se o filme queria fazer proselitismo ou atacar o transhumanismo. Por incrível que pareça, era proselitismo mesmo.
Abusa-se de imagens e motivos religiosos com efeitos especiais toscos de anjos, alienígenas verdes e centauros jogando futebol (e eu que pensava que os centauros eram criaturas mais sábias!). Ficaria melhor ter mostrado pinturas renascentistas do que esses efeitos especiais mal feitos. Há uma cena de impressionante mal gosto com a exposição irritantemente longa de animais atropelados. A trilha sonora parece extraída de videogame de combate.
Mas o ponto realmente negativo e inaceitável do documentário é a utilização de algumas ideias que apelam para uma credulidade quase religiosa para costurar a conciliação entre ciência e religião. Se a ideia é mostrar que religião e ciência podem caminhar juntas e que sua separação é recente, há farta evidência histórica sobre isso (ex: antigos egípcios, os alquimistas etc.). Mas é totalmente dispensável apelar para o mais bizarro dos misticismos para isso, como é feito no final do terceiro episódio. O clímax do misticismo bizarro é a  picaretíssima fala do místico francês e "profeta de extraterrestres" Rael -- uma verdadeira agressão a todo aquele que possuir um mínimo de massa encefálica entre as orelhas.
Não estou dizendo que toda ponte que se tente fazer entre a ciência e a realização é descabida ou que o filme não traz observações interessantes. Na vida, temos que tentar separar a criança da água suja. Achei muita coisa ali interessante. Só que essa relação entre tecnociência e relligião não é bem estudada, nem tampouco aproveitada (não se diz: quais pedaços de ciência e religião são inconciliáveis, quais são aproveitáveis etc.). O resultado dessa pressa é algo que é feio demais para ser atrativo como religião e crédulo demais para ser aceito por uma mente minimamente cética. É o problema da sereia transhumanista: na pressa de se desfrutar os amores de uma bela sereira, naufraga-se a nau da razão, a única que poderia levar o marujo encantado para os braços de uma mulher de verdade.
Eu tenho a intuição de que algum movimento semelhante ao transhumanismo poderá estabelecer uma ponte entre ciência e religião. Da ciência, aproveitando-se a razão como meio de apropriação e transformação do mundo. Da religião, aproveita-se a estética e os sonhos que satisfazem a dolorosa condição humana. O resultado, seria algo que tem os sonhos da religião como projetos a serem realizados pela ciência e tecnologia. Os dogmas religiosos deixam de ser dogmas em que você tem que acreditar e se transformam em projetos que você deve perseguir. Esse é o pensamento que, para mim, parece estar por trás de vários pensadores transhumanistas e no movimento da singularidade. E, na minha opinião, tem o potencial para se transformar em um mito moderno. Mito no sentido positivo que lhe dava Joseph Campbell, uma espécie de software mental que orienta nossa ação e compreensão no mundo, que organiza a relação entre o eu mortal e tudo-o-mais. Um mito que, portanto, não precisa ser necessariamente falso ou baseado no misticismo. Pode ser baseado na engenharia.
Mas o documentário Aprimoramento Humano não atinge esse objetivo, não consegue costurar bem esse mito, porque acaba apelando para um misticismo agressivo (sinceramente, Rael?!?) e para um déficit de racionalidade ou espírito cético. Mas é mais um experimento na tentativa de se costurar um mito moderno. Vale lembrar que as religiões tradicionais contaram com centenas ou milhares de anos de experimentação e seleção cultural para atingir o design atual (alguém se lembra da cena de vários pretensos messias profetizando e competindo por seguidores em "A Vida de Bryan"?). O transhumanismo e o movimento da singularidade são extremamente recentes e estão se saindo bem. Aguardemos os próximos experimentos. 

Um comentário:

  1. Cara, só sei que, quem não sonha com a vida eterna são pessoas com má vontade... Seria extraordinário!
    (Andreza)

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