domingo, 10 de julho de 2011

Vê se a Rainha ri disso!

No último post tentava argumentar que o mal-estar em relação à morte e outros aspectos negativos da condição humana não é exclusividade transhumanista. O segundo exemplo com que gostaria de ilustrar este traço humano pan-cultural da consciência (e desejo de transcendência) de aspectos negativos da condição humana pode ser encontrado em Hamlet, de Shakespeare, e em vários escritores do renascimento ou do barroco.

Vejamos, de início, a visão de Shakespeare (ou pelo menos de Hamlet) do mundo:

“Como são enfadonhas, azedas ou rançosas,
Todas as práticas do mundo!
Ó tédio, ó nojo! Isto é um jardim abandonado,
Cheio de ervas daninhas,
Invadido só pelo veneno e o espinho –
Um quintal de aberrações da natureza.” (Hamlet, I, 2)

Ou, ainda, falando da terra e do ar:

“o ar, olhem só, o esplêndido firmamento sobre nós, majestoso teto incrustado com chispas de fogo dourado, ah, para mim é apenas uma aglomeração de vapores fétidos, pestilentos. Que obra-prima é o homem! (...) Contudo, para mim, é apenas a quintessência do pó.”

Em uma cena famosa de Hamlet, que se passa em um cemitério, depois de refletir sobre a fragilidade da vida humana e da decomposição de corpos que outrora foram pessoas, Hamlet toma em suas mãos o crânio do falecido bobo da corte, Yorick, e indaga a caveira descarnada:

“Yorick, onde andam agora as tuas piadas? Tuas cambalhotas? Tuas cantigas? Teus lampejos de alegria que faziam a mesa explodir em gargalhadas? Nem uma gracinha mais, zombando da tua própria dentadura? Que falta de espírito! Olha, vai até o quarto da Rainha e diz a ela que, mesmo que se pinte com dois dedos de espessura, este é o resultado final; vê se ela ri disso!” (V, 2)

Hamlet para a caveira do bobo da corte: “Olha, vai até o quarto da Rainha e diz a ela que, mesmo que se pinte com dois dedos de espessura, este é o resultado final; vê se ela ri disso!”


Essa consciência da fragilidade e da nulificação do sentido da vida pela consciência da morte pode ser encontrada até em autores do outro lado do Atlântico, como Gregório de Matos:


“Nasce o Sol e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tritezas, a alegria.
Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz falta a firmesa,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se a triteza,
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza.
A firmeza somente na incostância.”
(Gregório de Matos em “Inconstancia das coisas do mundo”)


Mas um importante detalhe deve ser observado: em muitas destas críticas (como no caso de Gregório de Matos), as evocações eloquentes dos aspectos negativos da existência humana não eram tão deprimentes quanto à primeira vista podiam parecer. A ênfase nos aspectos negativos da existência mundana se fazia em contraste com outra existência superior e perfeita, tomada por garantida: a espiritual. Assim, por mais que se atacasse a existência material como fútil ou fétida, essa crítica servia para dourar, pelo contraste, o ouro espiritual.

É interessante, ainda, notar que mesmo visões otimistas da vida terrena, como a dos filósofos iluministas e sua crença inabalável na ciência como instrumento do progresso e bem-estar humanos, pressupunham a existência de Deus (deísmo) e da imortalidade da alma. Na verdade, essa crença era a base de vários sistemas filosóficos e científicos, como o de Descartes e Newton.  Newton era envolvido em várias atividades místicas, como a alquimia e tinha crenças improváveis, como a de que pertencia a uma sociedade secreta que remontava à época de Pitágoras. Descartes inventariou uma série de raciocínios céticos em suas meditações, levando a dúvida até as últimas consequências como uma tentativa de refutar as dúvidas e afirmar a certeza de verdades como a existência de Deus e a imortalidade da alma. Mas o mesmo espírito crítico e cético que sepultara as superstições e a autoridade da Igreja se desenvolveria a tal ponto de também derrubar estas certezas iluministas, certezas estas responsáveis pela elegância de seus sistemas filosóficos e pela visão de mundo e da condição humana otimistas que irradiava do "século das luzes".

A consequência desses desdobramentos é que chegamos ao ponto em que temos a mesma consciência de sempre dos aspectos negativos da condição humana, porém, agora -- exceto para os crentes e supersticiosos --, não temos a menor perspectiva das glórias douradas da vida espiritual: tanto para os bons quanto para os maus, o destino final é a extinção com a morte: “bons ou maus, belos ou feios, ricos ou pobres, todos são iguais agora”, reduzidos ao nada. Se adicionarmos a isso  toda destruição e sofrimento detonada no século XX, chegamos a um panorama nada auspicioso para a humanidade, um engolfamento existencial. Uma situação que parece pendular de um lado, para os roteiros ingênuos de faz-de-conta da religião (seja em suas versões mais brutas e tradicionais, seja nas modalidades mais lights e espiritualizadas). De outro lado, temos a aceitação da realidade árida como ela é, o contentamento em viver a vida em sua miséria ordinária, com pequenas vávulas de escape no álcool, no sexo e na diversão.

Sem necessariamente abrir mão de todas as "válvulas de escape", vejo o transhumanismo como uma forma de contornar este estado de coisas. Por um lado, não se nega a dureza e aspereza da realidade, nem se tenta maquiá-la com mitos (não, não há nada que sustente a ideia de que Deus exista ou nos ouve e, principalmente, não há qualquer indício de existência após a morte, a não ser a mistura humana de medo e imaginação). Por outro lado,  não se conformar com as coisas como elas são: propõe-se usar a engenhosidade humana para aproximar a realidade dos sonhos acalentados pela humanidade desde épocas imemoriais. Sonhos que, tomados como realidade pelas religiões, serviram como sedativos até os dias de hoje. Nesse aspecto estou de acordo com Kurzweil quando ele diz que não é mera coincidência que várias de suas ideias parecem ter ressonância com as ideias religiosas: é que tais ideias refletem os objetivos da humanidade.

Mas nessa difícil jornada de luta e afirmação da vida, de busca por mais vida, é preciso ter cautela e distinguir os fatos dos projetos ou separar os fatos das especulações. Por um lado, celebrar e antever a concretização de objetivos fabulosos nos inspira e nos ajuda a manter a motivação e potencializar a ação. Por outro, é preciso ter em mente que só se pode alterar a realidade com um conhecimento objetivo e preciso dela. Distorcer os fatos movidos por um desejo de enxergar fontes  de água fresca e tamareiras onde há apenas areia quente significaria sair de uma fria (o delírio religioso) para entrar em uma fria ainda maior (um delírio tecnicamente requintado, mais difícil de ser denunciado). E é por isso que defendo que, independentemente da possibilidade de realização de qualquer proposta particular que povoe o ideário transhumanista (criogenia, upload da mente, imortalidade física, singularidade, nanotecnologia capaz de fabricar quaisquer materiais etc.), o que importa é o método: o de usar a tecnociência para moldar a realidade. Essa é, a meu ver, a única conciliação possível entre ciência e religião: transformar os melhores sonhos desta em projetos daquela.

Um comentário:

  1. Excelente observação, inteligente e pertinente. Você precisa continuar com o Blog! Essas ideias são interessantes e sua reflexão está avançada.

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